“Mamis, eu mudei o número do telefone; o antigo é para negócio. Estou precisando de ajuda”. Assim um golpista iniciou a conversa, pelo WhatsApp, com uma senhora de 83 anos, moradora do Cachambi, há pouco mais de um mês. O celular tinha uma foto recente do filho, um professor universitário que vive em Salvador. A idosa fez quatro depósitos, por Pix, para a tal pessoa, totalizando R$ 9.900. A partir da visita de uma filha, que mora em Araruama, a ficha caiu. As duas ligaram para o professor, que negou ter pedido qualquer auxílio. Um boletim de ocorrência foi feito, e os bancos da origem e do destino do dinheiro foram procurados. Mas nem sinal do autor do golpe.
Os números da violência de julho, divulgados ontem pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), mostram que o Rio tem sido terreno fértil para os golpistas. De janeiro a julho, foram 72.457 registros de estelionato no estado — o dobro do mesmo período de 2021 e mais do que os 71.145 do ano passado inteiro. Isso dá mais de 14 casos por hora. De toda a série histórica, em 2022 foi constatada a maior quantidade de ocorrências desse crime no primeiro semestre desde 2003.
Apenas em julho, foram 10.525 ocorrências de estelionato. Mantida a tendência, chegaremos ao fim deste ano com mais de 120 mil registros.
— Em nossa família, sempre nos ajudamos muito. Por isso, fiz os depósitos. Mas, da próxima vez, vou ficar mais atenta e ligar antes de fazer qualquer transferência. O telefone era o número do meu filho, só que o código da operadora era 21, e o do meu filho é 71 — conta a idosa, que pediu para não ser identificada.
Pelo novo boletim do ISP, o crime com maior número de registros continua sendo furto. De janeiro a julho, foram quase 93 mil ocorrências no estado. No entanto, a proporção entre furto e estelionato está se estreitando. Em 2003, quando a série histórica começou, para cada golpe, havia 12 furtos. Este ano, de janeiro a julho, os estelionatários apertaram o passo: para cada 1,3 registro de furto, há um de estelionato.
A professora de inglês e francês do Senac Carli Storino, de 56 anos, moradora do Humaitá, está entre as vítimas. No caso dela, o golpe foi praticado por meio da conta hackeada de um amigo no Instagram.
— Ele oferecia móveis usados de um amigo de São Pedro da Aldeia. Eu me interessei por uma cama de R$ 700. Comecei a conversar com o golpista, pelo Direct, achando que era o meu amigo. Dizia que a pessoa precisava vender logo, porque iria morar em Portugal. Perguntei sobre o transporte, e ele falou que uma transportadora traria tudo para o Rio. Queria que eu depositasse o dinheiro de uma vez. E eu disse que faria a transferência de uma parte, pagando o restante quando a cama chegasse — conta Carli.
Por Pix, a professora transferiu R$ 300. Depois viu um post de uma amiga alertando para o golpe, dizendo que ela mesma tinha desembolsado R$ 300 por um micro-ondas que nunca chegara. As duas registraram a ocorrência.
Menos homicídios e roubos
Uma tendência que vem sendo notada, especialmente a partir de 2020, segundo os números do ISP, é a queda dos crimes mais violentos — como homicídio, roubo e latrocínio. O número de assassinatos, por exemplo, caiu 10,8% este ano. Crimes menos violentos — como furto e estelionato — têm, por outro lado, forte tendência de alta. Para especialistas em segurança, está havendo uma migração de delitos.
Ex-chefe do Estado-Maior da Polícia Militar, o coronel Robson Rodrigues acredita que o crescimento do estelionato em relação ao furto e ao roubo tem como explicação avanços tecnológicos e a pandemia:
— As novas tecnologias, o Pix. Por um lado facilitam, mas, por outro, fragilizam. A pandemia leva as pessoas a utilizarem os meios tecnológicos, que facilitam as compras, por exemplo. O volume dos negócios pela internet aumentou. Só que há pessoas ou organizações criminosas que se valem disso para praticarem crimes.
O especialista espera que as autoridades de segurança pública estejam atentas, melhorando as formas de investigação, com análises mais aprofundadas sobre esse tipo de delito. Ele defende ainda que sejam abertos canais para coletar junto às pessoas lesadas, de uma forma ativa, maiores informações sobre a dinâmica desse crime.
— Acredito que, no caso das modalidades de estelionato mais antigas, a Polícia Civil, a quem cabe investigar, já tenha um padrão e saiba lidar com esse tipo de crime. Mas um fenômeno criminal se modifica em virtude de fatos, como oportunidades. O crime não vai acabar. Mas o que se espera de uma sociedade democrática e com forças de inteligência e racionalidade é que seja feito o controle do crime para que ele não dispare.
Ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais (Bope), Paulo Storani também credita às facilidades da internet o boom no estelionato, um crime de oportunidade:
— A morte violenta intencional vem caindo, o que é uma tendência. Mas temos que aguardar. Em 2021, ainda estávamos sob os efeitos da pandemia. Este ano ainda não voltamos totalmente à normalidade pré-pandemia. De qualquer forma, há muita gente circulando nas ruas e voltou a pujança do comércio. Isso pode fazer retornar alguns delitos, que podem terminar com morte, principalmente o latrocínio. Vamos ver até onde chegamos. Ainda fico preocupado com o movimento do narcotráfico, que deu uma fortalecida grande.
Em relação aos crimes econômicos, segundo Storani, há criminosos se especializando neles e praticando golpes tendo como alvos pessoas idosas ou desatentas. O grande problema, acrescenta ele, é que o Brasil tem uma Lei de Execução Penal muito permissiva:
— Alguém que pratica estelionato, se é localizado, dependendo da pena aplicada, muitas vezes sequer é preso. As pessoas migram de crimes, com a possibilidade de uma pena menor. Enquanto tivermos essa tolerância na Lei de Execução Penal, vamos ter o criminoso navegando no Código Penal no artigo que melhor lhe convém. Sem falar que a possibilidade de identificar criminosos que praticam estelionato é mais difícil. Em homicídio, a média nacional é de 8% de identificação e prisão do criminoso. Furto é de 3%. Imagine estelionato?
‘Leis brandas’
Até grandes bancos têm feito campanhas publicitárias para alertar seus clientes sobre todo tipo de golpe. Empresa que oferece atendimento de limpeza, manutenção e reforma, a Central Multiserviços, com sede no Irajá, foi surpreendida por faturas cobrando por produtos, que nunca pediu nem recebeu. Uma das compras foi de R$ 2.900. A outra somou R$ 7.500.
O criminoso tinha usado o CNPJ e outros dados da empresa para fazer duas compras, por atacado, em lojas de São Gonçalo e Niterói, em junho e julho. Ao tomarem conhecimento do que ocorrera, os donos da empresa fizeram boletins de ocorrência e postaram nas redes sociais um alerta sobre o golpe.
— Como vendem produtos sem consultar nossa empresa? Soubemos que a primeira compra foi feita pelo telefone, e o material foi deixado na calçada em frente a um galpão, que estava fechado, perto do Engenhão — recorda um dos sócios da empresa, que pede para não ser identificado.
Por e-mail, a Polícia Civil citou que “as leis atuais são brandas com furtadores e estelionatários por considerar que não há violência e os mesmos respondem em liberdade, o que causa sensação de impunidade e também reincidência”. A instituição garante, porém, que “segue investigando, identificando e prendendo criminosos envolvidos nessas práticas delituosas”. Procurada, a PM não se pronunciou.
Fonte: https://extra.globo.com/casos-de-policia/rio-tem-um-registro-de-golpe-cada-quatro-minutos-numeros-de-2022-ja-superam-todo-ano-passado-25561144.html